Esse mês a escritora Neyd Montingelli escreveu sobre um cavalo que tem vocação para ensinar os jovens cavaleiros e amazonas. Veja abaixo o conto.
Meu nome é Mancha, sou um cavalo da escolinha
Meu nome é Mancha, mas eu nasci Archibald II e fui muito paparicado até eu não atingir a altura e a pelagem que todos queriam e até descobrirem que eu era filho do cavalo do arado e não do garanhão do Haras. Também, meu pai tinha muito mais charme e lábia que aquele metido ensebado.
Bem, não sendo filho do ensebado, não pude mais ficar no cercado chique, com os meninos comportados, comendo aquelas gostosuras. Fui morar lá com a galera do fundão. Pensando bem, era divertido enquanto eu era pequeno. Ficava solto com as galinhas, as ovelhas, as cabras. Podia comer o que quisesse. Ganhava um pouco de uma ração bem ruim, mas eu já tinha me fartado de comer o tenro capim dos campos e nem me importava, pois eu era livre e andava por tudo.
Quando cresci, foi um pouco triste e dolorido. Uns homens de cara amarrada vinham todos os dias e me batiam com umas varas só para poderem me montar. Eu não queria, mas tive que deixar, afinal eles é que mandavam, foi o que o aprendi a duras surras. Depois acostumei. Achei melhor ficar assim, bem mansinho, daí ninguém judia de ninguém. No final até dão uns agrados ou comida melhor.
E os anos passaram. Eu puxei arado, carroça, juntei gado, levei gente, trouxe gente, fiquei na chuva, fiquei no sol, comi muito, comi pouco, menos do que mais, namorei e até tive um filho. É a vida de um cavalo de trabalho. Um dia veio uma mulher e ficou me examinando. No dia seguinte eu fui parar em uma Hípica na cidade. Achei muito estranho.
O lugar era grande, cheio de cavalos, só que eles não ficavam soltos como lá no Haras. Eles ficavam nas baias. Eu também fui morar em uma baia. Um quartinho pequeno forrado com cepilho. Em um canto tinha ração cheirosa e no outro tinha capim seco mas era muito bom. Comi quase tudo. A água era fresca, igual do rio e por mais que eu tomasse não acabava. Gostei do lugar.
Fiquei ali, sem fazer nada, só comendo. Estranho.
Um homem veio e me levou para um outro lugar e me deu um banho. Nunca tinha tomado banho assim. Só tinha entrado no rio. Banho com escova e sabão, nunca. Gostoso! Fiquei no sol, secando.
Depois, colocaram ferraduras novas, foi um alívio. Aquelas velhas doíam meus cascos, pois estavam gastas. Não carreguei nada, não puxei nada. Estou achando estranho.
No dia seguinte um outro homem esquisito veio me buscar. Falava comigo como se fosse meu amigo, gostei dele. O cara que me deu banho já era meu chapa e esse agora também. Estou gostando daqui!
Os dois colocaram uma sela diferente em mim. Bem menor, mais leve, nem apertava. Lá no Haras eles apertavam tanto que doía a pele, tinha até um cobertorzinho em baixo, ficou macio. Eu abri a boca para receber o bridão e para minha surpresa não machucou nada. Era confortável.
O cara novo foi falando comigo e me levou pelo corredor entre as baias. Só então eu fui conhecer os meus colegas. Fui olhando os outros cavalos meio de lado, pois ainda não conhecia ninguém. Só com o tempo é que fui fazer amizade com todos.
O cara novo, descobri, o nome dele é Professor, disse que eu vou me chamar Mancha, por causa da marca branca na minha testa. Gostei do nome. Ele até mandou escreverem o nome no meu quarto. Eu estou chique mesmo.
Chegamos em um grande cercado. O Professor montou e começamos a andar, andar, andar. Eu obedeci em tudo. Ele gostou. Dia após dia, ele me ensinou muitos truques: passar por umas varas no chão, pular umas cerquinhas, ir para frente, parar, seguir os outros cavalos, obedecer aos comandos. Gostei de tudo. Depois de cada ordem que eu acertava ele passava a mão no meu pescoço e isto era muito bom. Era divertido fazer aquelas coisas que ele chamava de trabalho. Eu entendia por trabalho outra tarefa.
Depois de um tempo ele trouxe uma menina de cabelos encaracolados perto de mim. Gostei da menina. Ela olhou bem nos meus olhos. Passou a mão no meu pescoço e na minha testa. Depois o Professor ajudou a menina a montar e ela passou a fazer aqueles exercícios que ele fazia. Era gostoso trabalhar com a menina porque eu sentia o amor dela por mim.
Depois de um tempo, um menino bochechudo também veio montar. Depois mais outro, mais outro, mais outro. Todos gostavam de mim. O Mancha é o cavalo das crianças. Iebaaaa.
O tempo já passou. Já faz muitos anos que estou aqui na Escolinha da Hípica. Ainda sou o Mancha das crianças. Nas competições sou disputado e o Professor tem que fazer sorteio entre as crianças para saber quem vai saltar comigo, senão eu teria que saltar 10 vezes no mesmo dia. Por mim tudo bem, mas já estou ficando velho e há o desgaste né?
Sabe o que eu sinto? As crianças me amam, amam, brigam por mim nas competições, tiram fotos, ganham troféus e medalhas comigo e depois quando ganham os seus cavalos e sobem para o outro nível, esquecem do velho Mancha. Nunca mais vem aqui dar um “OI”. Nunca mais vem aqui trazer uma cenourinha, uma maçãzinha ou tirar uma fotografia depois de mocinhos ou adultos.
Mas, é a vida né? É o crescimento. Essas crianças passaram de fase. Acho que o Mancha aqui ajudou e eu vou continuar a ser como sou: um cavalo feliz em contribuir para crescimento da carreira do atleta Hípico.
-Vai meu menino e minha menina, vai trotando para o seu futuro que o Mancha torce por você!
Conto de Neyd M.M.Montingelli.
Neyd nasceu e mora em Curitiba, casada, tem 4 filhas e 1 neto, formada em Psicologia, com especializações em Nutrição, Queijos, Leite e outros cursos na área de animais. Já teve criação de Cabras e um Laticínio. É aposentada pela Caixa Econômica e agora escreve sobre a família, crônicas e contos tendo 8 livros já publicados.
Fotos: Jota Design por JuRibas
Modelos: Fabiana Amaral e SS Neon